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Parece
haver algo de comum entre elas, mas numa pequena reflexão a que fui conduzido,
encontrei entre as duas actividades um ponto muito importante que as afasta de
qualquer eventual comparação: a de (certo) ministro e a de “jagunço” - a
designação mais comum dos arrumadores de automóveis que enxameiam a cidade.
Só
os venenosos e mal intencionados encontram paralelo entre as duas
actividades.
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Aproveitando
uma pausa nos meus afazeres, saí para tomar uma bica.
Quando
estava perto do café vejo um rapaz um bocado “mal acabado” que, ia andando e
com o braço esquerdo esticado para o lado, subindo e descendo, e com o direito sempre
a dar-a-dar num movimento pendular da direita para a esquerda e vice-versa. Que
entra no café.
Ao entrar
na pastelaria foi com dificuldade que me desviei do indivíduo. Por pouco não
levava uma pancada em zona bem sensível do corpo (do braço que pendulava) e um
estaladão do braço que, inopinadamente, estica a meia altura.
- “Desculpe
lá, ó patrãozinho. Eu não queria pretubá-lo. Mas sabe, a bem se dezer, eu sofro
duma doença professional…” - diz-me ele, prevenindo qualquer reacção da minha
parte.
Vi logo
do que se tratava. E mortinho estava eu por ter dois dedos de palestra com um
destes solícitos e indispensáveis arrumadores. Só que, na operação de arrumar o
carro, eu não queria fazer essa abordagem: não gosto de perturbar as pessoas
quando estão a trabalhar.
- Ó
amigo, está desculpado - respondi. Mas falou em doença profissional, foi?
- “Foi.
Pois atão se é doença que s’apanha no inxercício da actividade profssional…”
- Ah!
Entendo… Mas…
- “Oiça,
patrão – interrompeu ele – não quer tomar um cafezinho cá co Abílio? Eu cá bebo
um bagacito e como uma bola de Berlim: tou no entervalo do almoço e ando de
dieta. O patrão peça o que quiser. Quem paga desta vez é cá o rapaz.”
Tantos
bagaços, cafés, bolas e queques já paguei… que resolvi aceitar esta generosa
oferta.
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- Ó
amigo, não quero desconsiderá-lo. Claro que tomo um café.
- “Ora
assim é qu’é falar, patrãozinho. Vou já provenir o mangas que serve aqui…”
Sentei-me.
O tipo lá continuava com os movimentos dos braços. Desta vez só um deles,
aquele que descreve o movimento pendular.
O Abílio
sentou-se, também. A mesa era individual e encostada à parede. O meu anfitrião,
digamos assim, em vez de se sentar à minha frente, sentou-se ao meu lado. E com
o braço do lado oposto àquele em que eu estava, com esse braço sempre a
dar-a-dar, agora para a frente e para trás.
- Mas
dizia o meu amigo…
- “Abílio,
já lhe dince…”
-
Desculpe. Dizia então o Abílio que tem uma doença profissional…
- “Inxato!
As mazelas que s’arranjam no trabalho não são doenças prufseonais?”
- Sim,
geralmente…
- “Claro
que sim. Já m’informei na AZAR: é doença prufssional. Ali, preto no branco.”
- Na azar,
disse? Ou no azar?
- “Na
AZAR: é qu’é a nossa ordem… Primeiro tivemos um sendicato. Atão era o AZAR.
Agora é uma ordem: e é a AZAR.”
- …
- “Mas eu
esclareço: AZAR é o nome da nossa ordem. E signefica: Arrumadores Zelosos
Atentos e Responsáveis…
- Oi, mas
isso é a sério…
“Nim
mais, pois atão! Quem enventou o nome foi um artista q’andou aí depois duns
dias d’apredezagem, que fez um curso como os menistros agora fazem: num abrir e
fechar d’olhos…”
- Então é
complicado entrar nessa actividade, é?
- “Claro!
Isto não é pra q’alquer… Segundo os nossos estatutos temos de ter um curso de uma
semana e meia e um estágio de dois meses…
- …!!!
- “Ah,
pois! Não é assim à balda, como se fossemos pró governo… Lá, agora!
É um
curso de semana e meia, mas no duro. São uma porrada d’horas só com dois
entervalitos (pra um copo, uma cigarrada ou um chuto).
É que as
cadeiras (é assim que se diz, não é?) são várias (eu leio pra não atrapalhar):
. Estatística
do Parque Automóvel
. Sociologia
Urbana
. Técnicas
arrumatórias
. Relações
com os clientes
. Ética
do Arrumador
. Arrumatologia
I
. Arrumatologia
II
. Normas
para a abordagem dos clientes normais
. Normas
para a abordagem dos clientes difíceis
. Normas
para a abordagem dos clientes assim-assim
. Técnicas
de defesa dos concorrentes (artes marciais ou similares)
. Regras
de trânsito que o arrumador pode (em certos casos) ignorar
. Cálculo
(de honorários)
. Princípios
de direito comunitário (internacionalização dos arrumadores)
. Noções
de História da actividade arrumatória
. Noções
básicas de saúde: síndrome do enjeitado
“É um
curso entensivo
Isto
depois de Bolonha…”
- O meu
amigo…
-
“Abílio, já lhe dince”
-
Desculpe: o Abílio fala que nem um doutor…
- “Mas,
oh patrãozinho! Eu tenho de saber dezer estas coisas do meu ofício, n’é assim?”
- Claro,
claro.
- “Atão é
assim: antes de Bolonha era munta defícil o curso. Tão defícil que havia
poucachinhos arrumadores: de canudo e boné.
Agora com
dois anos de prática temos uma porrada de créditos (isto é qu’é falar, n’é
patrãozinho?) e só temos de fazer duas desceplinas: Arrumatologia I e Técnicas
de defesa dos concorrentes. Já qu’a um mnistro deram tantos créditos (sei lá,
alguns 350), qu’ele só precisou de fazer uma desceplina, e mesmo essa foi na
secretaria, o nosso bastonário também exegiu o mesmo pr’a gente…”
- !...
- “Mas
com inzame a sério e defícil pra caramba. O inzaminador é um arrumador batido,
com anos de prática. Se tivermos quatro anos de prática os créditos são muitos
mais: só temos de fazer inxame de Arrumatologia I, mesmo qu’agente não queira. Não
basta falar c’a secretaria, com’o tal menistro que diz que é doutor.
Tudo
legal, como o patrão vê. Não é aquela bandalheira dos mnistros que querem ser
doutores à força …”
- …
- “Estamos
a preparar uma acção de luta para a nossa actividade ser considerada de
utilidade pública e para aumentar a nossa tabela de um euro por cada carro, para
dois euros… No mínimo…”
- !
- “Atão não
é para todos que aumenta o custo de vida?”
- Tem razão
– achei melhor concordar. Olhe, amigo…
- Abílio…
- Olhe,
Abílio, gostei desta palestra. E tem razão: os ministros deviam pôr os olhos em
vocês e fazer tudo como deve ser…
-
“Inxato”
- Agora,
se me dá licença, vou à minha vida.
- “Por
favor, patrãozinho. Tamém gramei este papo. Eu ia pagar… Mas s’o patrãozinho
fezer questão em fazê-lo… Na s’acanhe. Qu’eu até me esqueci do pilim no carro…”
-!!!
- “Claro
que tenho uma banheiroca barata. Com a folha que faço todos os dias, à volta
dos 50, 60 euros (qu’isto aqui é tudo gente de bago…) dá pra um chutito e umas
curvas…”
- …
-“Adeus,
patrãozinho”. Isto tá bom não é pr’a gente. É p’r os chicos-espertos que chegam
a mnistros, como esse que veio lá de Tomar…