Agora a mala do correio era transportada a pé desde a estação receptora e distribuidora do concelho à da freguesia
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Anos 40 e tal. As férias grandes.
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As férias grandes, não: as férias
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enormes. Passadas na aldeia
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que me viu nascer.
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Muitas recordações. Algumas
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reminiscências. Vários “filmes”
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vivos na memória.
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Toda de negro vestida.
Toda de negro vestida.
Era impensável uma viúva deixar de vestir de preto. Abandonar o luto. Carregado. Por todo o resto dos seus dias.
O lenço, preto, na cabeça,
inconcebível, também, uma mulher exibir os seus cabelos soltos: a "decência" não consentia
de pontas laterais reviradas
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para cima, descongestionando
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a cara, aliviando o afrontamento
O calor, sufocante, desprendia-se, com o pó, do caminho de terra
que os lamaçais de sucessivas invernias deixavam leve e volátil.
As mãos, ora pendentes, ora
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apoiadas nos quadris,
os dedos, de quando em quando, limpavam a fronte, enxugando-os no avental também preto.
Por vezes era com uma ponta deste que limpava o suor.
O saco do correio,
confeccionado numa espécie de tela, com a boca apertada com uma correia
que entrava num cadeado fechado sobre ela e um comprovante com carimbo da estação de origem,
à cabeça, sobre o lenço.
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O andamento
marcado ao compasso do corpo volumoso, velho e pesado,
que avança ora balançando sobre a anca e o lado direito, ora sobre o lado e a anca contrários…
numa cadência e num ritmo
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invariavelmente repetido
qual pêndulo, lento, que ao mesmo ritmo vai progredindo suavemente no seu percurso.
O horário não permite pausas e
a canícula não dá tréguas
cumprida a hora da partida, a da chegada, sem relógio mais
que a posição do Sol escaldante, está garantida pela cadência imperturbável.
Cara fechada, olhos no chão,
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bagas transpiradas borbulhando
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na testa e escorrendo, a correia
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percorre, numa rotina
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cansativa, a légua que a
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separa da estação
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dos correios do concelho até à
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da sede desta freguesia
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dispersa que também
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delimita a área
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municipal nesta direcção
a correia. Não sei se por isso, se por coincidência, Maria Correia para todos que a conheciam.
Mais que uma nuvem da minha
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meninice, a ti Maria Correia é
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uma imagem muito viva desses
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meus longínquos idos.
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Imagem de vida sofrida, do cansaço,
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do preço do pão do dia-a-dia.
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Imagem da rotina.
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Da inelutabilidade.
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Imagem dos deserdados
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da vida.
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2 comentários:
Sem mais palavras.
Belíssima homenagem.
Texto muito bonito. Lembro-me de figuras parecidas, quando em férias por esses idos anos no Distrito de Aveiro.
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