O Público (P2) de ontem trazia uma entrevista bem conduzida por António Marujo (AM) e que encontrou no ministro do Vaticano da Cultura, o arcebispo Gianfranco Ravasi (GR), um “simpático” e algo corajoso e suficientemente “aberto” interlocutor. (Ou talvez não, e a habituação às águas mornas em que estas coisas geralmente se movem é que causam a nossa surpresa, por deixarem de ser águas mornas e paradas para se revelarem, pontualmente, mais vivas e brandamente agitadas).
Foram abordadas algumas questões delicadas (numa certa e bem identificada perspectiva).
No destaque preambular da entrevista, duas ideias ficam a pairar: “Gianfranco Ravasi defende que é preciso quebrar a fronteira entre a fé e os grandes artistas e anuncia que irá convidar criadores de renome para fazerem obras de arte que falem dos grandes símbolos. E diz que já não há ateus como antigamente.”
Mas a diversidade de temas abordados é mais larga. A dada altura, por exemplo, AM traz à liça a muito discutida “questão de Deus no Tratado Constitucional europeu”. Lembrando que “Goethe dizia que o cristianismo é a língua materna da Europa”, o jornalista pergunta: “o que queria a Igreja com o debate sobre [ess]a questão?”
Em síntese o arcebispo responde e argumenta: “Há uma consideração que, para mim, justificaria, de um ponto de vista laico, a menção às raízes cristãs: se virmos a arte de quase dois mil anos, três quartos estão impregnados de elementos ligados à cristandade. É verdade que, para o direito, há o influxo do mundo romano, para a filosofia há o contributo do mundo grego, e houve também o influxo do iluminismo e do socialismo. Houve outros, mas não há dúvida de que o cristianismo é a língua materna da Europa.
Nieztsche [sic!] dizia: "Inexoravelmente, mesmo sendo contra, os Salmos, para mim, são a pátria. Petrarca é terra estrangeira". E pouco depois recupera: “houve uma outra dimensão, que criou dificuldades: a de reconhecer que a cultura cristã também incidiu na formação do homem europeu, mesmo do ponto de vista ético e social. Isto não foi aceite, por se pensar que se iria afirmar uma primazia da religião sobre a política.”
E depois de lembrar que “o Decálogo (...) exprime de modo iluminado a antropologia do Ocidente, quase a lei natural” sublinhou a necessidade de reconhecer “que a Bíblia e o Evangelho, com o tema do amor” são “categorias” que influíram e continuam a influenciar “positivamente na sociedade contemporânea”. Para logo concluir: “Creio que se deve reconhecer que, social e moralmente, o ethos europeu tem esta presença que deve ser legitimamente afirmada. Tanto que algumas categorias que estavam em discussão eram de matriz cristã: a liberdade, a dignidade da pessoa, a paz.”
É também abordada a questão do “diálogo entre fé e ciência”, recordando AM que “há a ideia de que a Igreja está sempre contra o progresso científico: Galileu, Darwin, agora a bioética...”
Ravasi, depois de lembrar que Galileu não foi, em bom rigor, condenado, conveio que “Galileu tinha razão e abalara as concepções dos teólogos de Roma.” E muito claramente admitiu “que houve culpas [da Igreja]”.
No entanto, continua, “não se deve temer restabelecer o confronto, mesmo que seja duro.”
“Como fala hoje a Igreja com o ateísmo?” – pergunta, a dada altura AM.
Em suma GR responde: “Esse é um problema grave. Falar com o autêntico ateísmo é uma tarefa difícil. Verdadeiros ateus como Nietzsche são pouquíssimos. Refiro-me aos que propõem uma visão do mundo e da vida realmente alternativa. [...] Diria que os últimos ateus foram os grandes pensadores marxistas e liberais...” Entre eles Bloch, Sartre, Camus, Bobbio (...) “Eram grandes laicos que se batiam contra o poder clerical, mas que tinham grandes visões.Os de agora são ateus que reflectem o clima do ateísmo actual, da indiferença. Tivemos a sociedade com Deus, depois a sociedade contra Deus, agora a sociedade sem Deus. É um problema, mesmo para alguns crentes, que acreditam em Deus mas para os quais acreditar ou não faz variar muito. Dialogar com esses grandes pensadores constrangia-nos a reflectir e a reconstruir a nossa própria visão. Com os actuais, é um jogo de pergunta-resposta, em que se responde de maneira apologética.”
Claro que Gianfranco Ravasi usa uma linguagem eclesialmente correcta mas, simultaneamente revelando uma abertura menos comum.
Nem podia ser de outra maneira, pois que a “nomenclatura” pura e simplesmente não admite o pensamento e a expressão dos católicos (Igreja) progressistas.
Uma das actualmente mais fracturantes questões (perdoe-se-me a bengala) que a igreja de Roma enfrenta, é posta pelo Público:
“No Génesis, diz-se que Deus criou o homem à sua imagem, criando-o homem e mulher. Não há um problema de falta de fidelidade da Igreja a esta palavra, em relação ao papel da mulher?”
Mas o arcebispo, de 65 anos, não se mostrou surpreendido nem hesitou na resposta, certo que invocando uma expressão de um dos menos progressistas papas que a história conheceu. (Claro que NESTA Igreja não pode haver papas progressistas. Leia-se, portanto, um dos papas mais conservadores...). E, de pronto, argumentou: “João Paulo II afirmou que é preciso reencontrar o papel da mulher, recordando que a presença feminina é seguramente mais activa que a do homem. É preciso recolocar o problema. Deve ter-se em conta que não se deve resolver o problema necessariamente de modo clerical. O referente principal na Igreja não é o padre, é o baptizado. Se nos reportarmos a essa centralidade, na pluralidade das expressões, é preciso dar à mulher uma função de relevo. Será um exercício laborioso, num caminho ainda longo, por parte do clero, das mulheres, dos homens e da comunidade eclesial.”
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E depois de lembrar que “o Decálogo (...) exprime de modo iluminado a antropologia do Ocidente, quase a lei natural” sublinhou a necessidade de reconhecer “que a Bíblia e o Evangelho, com o tema do amor” são “categorias” que influíram e continuam a influenciar “positivamente na sociedade contemporânea”. Para logo concluir: “Creio que se deve reconhecer que, social e moralmente, o ethos europeu tem esta presença que deve ser legitimamente afirmada. Tanto que algumas categorias que estavam em discussão eram de matriz cristã: a liberdade, a dignidade da pessoa, a paz.”
É também abordada a questão do “diálogo entre fé e ciência”, recordando AM que “há a ideia de que a Igreja está sempre contra o progresso científico: Galileu, Darwin, agora a bioética...”
Ravasi, depois de lembrar que Galileu não foi, em bom rigor, condenado, conveio que “Galileu tinha razão e abalara as concepções dos teólogos de Roma.” E muito claramente admitiu “que houve culpas [da Igreja]”.
No entanto, continua, “não se deve temer restabelecer o confronto, mesmo que seja duro.”
“Como fala hoje a Igreja com o ateísmo?” – pergunta, a dada altura AM.
Em suma GR responde: “Esse é um problema grave. Falar com o autêntico ateísmo é uma tarefa difícil. Verdadeiros ateus como Nietzsche são pouquíssimos. Refiro-me aos que propõem uma visão do mundo e da vida realmente alternativa. [...] Diria que os últimos ateus foram os grandes pensadores marxistas e liberais...” Entre eles Bloch, Sartre, Camus, Bobbio (...) “Eram grandes laicos que se batiam contra o poder clerical, mas que tinham grandes visões.Os de agora são ateus que reflectem o clima do ateísmo actual, da indiferença. Tivemos a sociedade com Deus, depois a sociedade contra Deus, agora a sociedade sem Deus. É um problema, mesmo para alguns crentes, que acreditam em Deus mas para os quais acreditar ou não faz variar muito. Dialogar com esses grandes pensadores constrangia-nos a reflectir e a reconstruir a nossa própria visão. Com os actuais, é um jogo de pergunta-resposta, em que se responde de maneira apologética.”
Claro que Gianfranco Ravasi usa uma linguagem eclesialmente correcta mas, simultaneamente revelando uma abertura menos comum.
Nem podia ser de outra maneira, pois que a “nomenclatura” pura e simplesmente não admite o pensamento e a expressão dos católicos (Igreja) progressistas.
Uma das actualmente mais fracturantes questões (perdoe-se-me a bengala) que a igreja de Roma enfrenta, é posta pelo Público:
“No Génesis, diz-se que Deus criou o homem à sua imagem, criando-o homem e mulher. Não há um problema de falta de fidelidade da Igreja a esta palavra, em relação ao papel da mulher?”
Mas o arcebispo, de 65 anos, não se mostrou surpreendido nem hesitou na resposta, certo que invocando uma expressão de um dos menos progressistas papas que a história conheceu. (Claro que NESTA Igreja não pode haver papas progressistas. Leia-se, portanto, um dos papas mais conservadores...). E, de pronto, argumentou: “João Paulo II afirmou que é preciso reencontrar o papel da mulher, recordando que a presença feminina é seguramente mais activa que a do homem. É preciso recolocar o problema. Deve ter-se em conta que não se deve resolver o problema necessariamente de modo clerical. O referente principal na Igreja não é o padre, é o baptizado. Se nos reportarmos a essa centralidade, na pluralidade das expressões, é preciso dar à mulher uma função de relevo. Será um exercício laborioso, num caminho ainda longo, por parte do clero, das mulheres, dos homens e da comunidade eclesial.”
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Colocando-nos numa certa perspectiva, a chave da grande problemática da Igreja (desde quase os seus primórdios, pelos vistos até aos confins dos tempos, a avaliar pelo conservadorismo machista da generalidade dos seus altos dignitários) está na última parte da última resposta desta entrevista, que acaba de ser transcrita.
Todos sabemos e sentimos que se trata de uma resposta arrojada se pensarmos no que é a maioria (da hierarquia) da Igreja.
Por enquanto, trata-se, aqui, da resposta (ousada, repito) de um membro daquela hierarquia que foi capaz de transmitir o que pensa, exactamente, uma grande parte do que ele considera o núcleo fundamental da Igreja: o baptizado. Só que, não sendo a Igreja uma organização democrática, esse núcleo é absolutamente mudo (e submisso, ou, pelo menos, conformista) face ao aparelho.
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Todos sabemos e sentimos que se trata de uma resposta arrojada se pensarmos no que é a maioria (da hierarquia) da Igreja.
Por enquanto, trata-se, aqui, da resposta (ousada, repito) de um membro daquela hierarquia que foi capaz de transmitir o que pensa, exactamente, uma grande parte do que ele considera o núcleo fundamental da Igreja: o baptizado. Só que, não sendo a Igreja uma organização democrática, esse núcleo é absolutamente mudo (e submisso, ou, pelo menos, conformista) face ao aparelho.
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2 comentários:
E quem não gosta de violinos?!
Eu cá sempre que vejo um padre a citar Nietzsche fico logo de pé atrás. Porquê? Porque esta gente gosta de dar uma imagem de modernidade e abertura de espírito. Mas, no fundo, é com o ardiloso intuito de levar a água ao seu moinho. Eu já os atendo.
JR
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