Esta tarde vagueei pelo mundo da lusofonia.
Uma mensagem de um amigo, que me enviava as Perguntas à Língua Portuguesa, de Mia Couto, foi o clic. E lá vou eu, por aí fora, tentar compreender melhor esse fenómeno. Que as Perguntas... já eu conhecia, mas foram o pretexto.
Para tornar o texto mais ligeiro (disfarçar a sua extensão), divido-o em três partes, que, de todo o modo, se seguem de imediato.
Percorri vários países lusófonos, "em voo rasante", mas acabei por me deter mais em Moçambique.
A língua portuguesa não é o idioma primeiro de toda a CPLP, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Não o é, desde logo, e por exemplo, em Moçambique, onde existem mais de 30 línguas, correspondentes a outros tantos grupos étnicos. No entanto, é a segunda língua de cerca de 40% dos moçambicanos. É, nomeadamente, a língua em que escrevem os escritores desse país.
Mas se o português não é a língua dos moçambicanos, ela é, contudo, na criativa expressão de Mia Couto, “a língua da moçambicanidade”.
Aliás, e curiosamente, a lusa língua, que fora um instrumento ao serviço da dominação colonial, viria a converter-se, por opção da própria FRELIMO, ainda durante a guerrilha, numa “arma para a unificação do país e a construção da Nação”. Passou a ser “um troféu de guerra, um pilar de afirmação”.
Voltando aos cultores das letras, “todos os escritores moçambicanos escrevem em português. Fazem-no porque sentem em português, vivem em português. Porém, é já um português outro, uma língua afeiçoada à cor e à textura da nação moçambicana” repete Mia Couto (excertos de texto publicado na antologia galega "Do músculo da boca", Ed. Encontro Galego no Mundo, Santiago de Compostela, 2001. — 09/05/2003).
Mia Couto será, sem exagero, o escritor moçambicano mais lido.
A sua extraordinária arte leva-o, na sua criativa e poética escrita, a praticar «a mestiçagem entre o português «culto» e as várias formas e variantes introduzidas pelas populações moçambicanas», operação que ele descreve como «o prazer de desarrumar a língua».
Como existe no povo moçambicano uma tradição de transmissão oral da cultura, daí que o autor de "Histórias Abensonhadas" (1994) combine, na sua escrita, a tradição oral africana à tradição literária ocidental.
Mas o que se passa com Mia Couto é, de algum modo, o que se passa com outros escritores dos países lusófonos africanos. É O FENÓMENO DA RECRIAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA NA NARRATIVA AFRICANA, tema da palestra proferida no Instituto Internacional da Língua Portuguesa (uma criação da CRLP) em 7 de Maio de 2007, por Simone Caputo Gomes (que constituiu também objecto da sua prova escrita para o Concurso de professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo).
E a professora brasileira traz outros testemunhos. Como o de Odete Semedo, que “expõe seu dilema entre criar na língua veicular do sentimento nacional da Guiné Bissau (“em crioulo gritarei a minha mensagem”) ou em português (“falar nesta língua lusa/eu sem arte nem musa/pois assim terei palavras para deixar/aos herdeiros do nosso século”), acabando por optar pelo bilinguismo”.
A questões desse tipo “a própria Odete responde no ensaio poético “A língua esvoaçante”, propondo a interpenetração de duas línguas a princípio antagónicas, numa harmonia de convívio, diríamos, heraclitiano”. E veja-se como é bela a sua explicação:
“A língua nasceu solta e desenvolta. Nasceu virada para fora de si. (…).A língua, na sua fantasia, tem vestidos: vestidos requintados com enfeites de emoção, roupa de mendigo e com remendos (…), vestido com bordados e afrontas que para muitos são heranças que os séculos lhe foram juntando num pé de meia. E com todos esses vestidos chega a bifurcar-se em língua do coração, língua do sentir, da alma e língua de contacto com o resto do mundo. (…) Têm elas o seu estilo de cooperação: a língua de viagens, a de contacto, acaba pedindo emprestadas as roupas de emoção da língua do sentimento (…). Esta, por sua vez vai deixando que a língua do sentimento faça uso de suas letras”.
(continua)
1 comentário:
Mia Couto desinquieta a língua, belamente.
Felizmente, anónimos também a fazem viver. Com tu aqui!
Abç
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