quarta-feira, 23 de janeiro de 2008
UMA IMAGEM, MIL FACES
Hospital de Santa Maria, cerca das 9 da manhã. Dia de semana.
Passos perdidos, em frente ao balcão da recepção do hospital.
Três corredores sucessivos, separados por portas de correr, de abertura automática.
Num compasso de espera, sento-me numa cadeira para observar os passantes.
É impressionante aquela turbamulta, num constante vaivém, que se atropela, que corre, que se acotovela, que barafusta, que protesta, que reclama, que se interpela, que sofre, que se cala, que se perde na barafunda... são dezenas e dezenas de pessoas que se cruzam, que se ultrapassam, aos ziguezagues ou em pequenos segmentos de recta, intercalados de vários desvios, umas em passo acelerado, outras quase em corrida, raras pausada e calmamente, em regra por imposição da idade ou por visíveis condicionamentos. Há os que, apoiados em canadianas, se balanceiam e atiram em consideráveis distâncias, ganhando uma velocidade notória. Há os que, arrimados a bengalas, avançam a passo miudinho. Há os que, pés marcando dez para as duas, avançam em passos largos. Há os que se arrastam, aos saltinhos. E os que, balançando-se lateral e acentuadamente, mal avançam escassos centímetros.
Há os que, acabados de saltar da cama, há duas ou três horas, enfiaram a mesma roupa de todos os dias, desenfiando-se rapidamente para a rua, cabelos ainda com os jeitos ganhos no travesseiro durante a noite.
“Feios, porcos e maus”, ocorre-me.
De facto, quase todos feios. E muitos, com aspecto de porcos. Maus? Talvez nem por isso.
Gordos e disformes, tantos. Secos que nem carapaus, alguns. Para além dos apenas gordos ou somente magros.
Altos ou baixos, preocupados ou aéreos, muitos de cara fechada e ar ausente. Todos apressados.
As portas parecem umas doidas tontas, constantemente a ameaçar fechar, mas a desistir, a cada instante, desse intento, tal a pressão da chusma que avança. Clic-clic, clic-clic – é o som que ressalta daquelas doidonas nervosas.
A primeira constatação que faço é a de que os serviços públicos hospitalares só são utilizados, por gente feia, pobre e degradada.
Gente que se levanta às seis e que se deita às onze da noite; elas, depois de concluída a lida diária da casa e de avançadas várias tarefas do dia seguinte. Todos, depois de um dia sem parança e sem laivos de esperança. Todos cansados da ginástica de fazer esticar os euros de forma a que não sobre sempre dia, como habitualmente sucede.
Aqui ou acolá, hoje, amanhã ou depois, sempre os mesmo dias de desatino, de luta, de desespero, de triste expectativa, marcados pelas rotinas, quais repetitivos movimentos pendulares. Cansativos. Desgastantes.
Gente cujo passado já caiu no esquecimento e a quem o futuro se apresenta como uma parede ou um túnel escuro como breu.
O presente é quanto lhes resta. Sempre igual. Sempre difícil. Sempre mais preocupante. Cada vez mais arrasante.
Mais parecem, todos eles, sombras de fantasmas.
E a solidão que transpira dessa mole?
E o desespero a que tantos não conseguem resistir?
Feios e com ar muito degradado?
Pudera!
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1 comentário:
O meu comentário é,talvez,um grito espontâneo:
"Belo!Belíssimo texto!"
Está lá tudo:o retrato preciso e inquietante;o estado de alma;as cores impressionistas...
APLAUDO.
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