caricatura de José Régio e o seu burro por Hermínio Felizardo
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SONETO DE JOSÉ RÉGIO
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Surge Janeiro frio e pardacento,
Surge Janeiro frio e pardacento,
Descem da serra os lobos ao povoado;
Assentam-se os fantoches em São Bento
E o Decreto da fome é publicado.
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Edita-se a novela do Orçamento;
Cresce a miséria ao povo amordaçado;
Mas os biltres do novo parlamento
Usufruem seis contos de ordenado.
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E enquanto à fome o povo se estiola,
Certo santo pupilo de Loyola,
Mistura de judeu e de vilão,
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Também faz o pequeno "sacrifício"
De trinta contos - só! - por seu ofício
Receber, a bem dele... e da nação.
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Conquanto escrito em 1969, o soneto mantém, hoje, de facto, uma extraordinária actualidade, mutatis mutandis certas referências e actualizando os valores aí referidos. (Um ordenado de seis contos era, então, um bom ordenado e o de 30 contos – 5 vezes superior – era um riquíssimo vencimento. Mas, atendendo à evolução do valor da moeda e à evolução das retribuições dessas funções, não há possibilidade de hoje estabelecer comparações entre elas: estão a vários anos-luz).
O que se passa hoje em tais matérias é, na realidade, escandaloso: seriedade, verticalidade, sensatez, contenção, sentido de Estado e da realidade são, agora, expressões sem sentido e motivo de discretos sorrisos complacentes com a ingenuidade de quem os refere, quanto mais de quem os pretenda praticar!
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