quarta-feira, 24 de outubro de 2007

NÃO É FICÇÃO

Recebi há uns meses por mail.
Já o “mastiguei” várias vezes.
Documento “frio”, esmagador. Arrepiante.

Por mais que alguns não admitam, é para ser levado muito a sério.
Escusado será lembrar que, embora aqui se fale do Brasil, o fenómeno não se restringe a esse país, aos seus políticos e à sua política.

Marcola é o nome de guerra de um moço de 38 anos (Marcos Willians Herbas Camacho, de seu nome num mundo a que já não pertence), chefe do gang brasileiro que pôs S. Paulo a ferro e fogo em 12.05.06, e que passou mais de metade da sua vida na prisão.
Iniciou a sua carreira aos nove anos de idade, no centro de S. Paulo, e hoje é quem dirige o PCC/Primeiro Comando da Capital, uma poderosa e muito activa organização de criminosos do Brasil: “Marcola perdeu a mulher com dois tiros na nuca e assumiu o poder no PCC sem fazer alarde” - Solange Azevedo e Eliane Brum, in Época, jornal brasileiro online. Que mais adiante esclarece: “O PCC de Marcola estendeu seus tentáculos do interior dos presídios até as ruas graças a uma poderosa rede de centrais telefónicas operadas por mulheres de criminosos”.
A dada altura da entrevista Marcola fala de Beira-Mar: trata-se do nome de guerra (Beira-Mar, por ter nascido numa favela com esse nome) de outro brasileiro, um dos maiores traficantes de armas e drogas da América Latina (Luís Fernando Costa).
Marcola fala também a dado passo do CV, o Comando Vermelho, que é ainda o símbolo do crime organizado.

Não sei se os senhores do grande capital e do mundo já terão lido uma peça destas. Mas algum dia – talvez tarde – vão saber disto a preceito.
Só me interrogo sobre o seguinte: um dia vai-lhes tocar uma macieza destas... Como vão reagir?

E se juntarmos, a estes exércitos, outros, de outros excluídos? E o dos que têm fome?

Marcola fala em não retorno. Em insolubilidade da situação.

Mas é claro que tem de ser possível uma solução. O que não pode é ser violenta.

(É melhor não deixar que o cow-boy dos States e outros rapazes que por aí esfregam as mãos, sedentos de demonstrações de força, não se metam nisso. Ou antes: eles vão acabar por ter mesmo de se meterem – mas doutro jeito!)


A entrevista é do jornal O Globo, conduzida por Arnaldo Jabor.

Não é longa (6 questões), mas dá muito que pensar.






«Entrevista do Marcola
23/05/2006

Estamos todos no inferno. Não há solução;
pois, não conhecemos nem o problema.

- Você é do PCC?
- Mais que isso, eu sou um sinal de novos tempos. Eu era pobre e invisível... Vocês nunca me olharam durante décadas... E antigamente era mole resolver o problema da miséria... O diagnóstico era óbvio: migração rural, desnível de renda, poucas favelas, ralas periferias... A solução é que nunca vinha... Que fizeram? Nada. O governo federal alguma vez: alocou uma verba para nós? E nós só aparecíamos nos desabamentos no morro ou nas músicas românticas sobre a "beleza dos morros ao amanhecer", essas coisas... Agora, estamos ricos com a multinacional do pó. E vocês estão morrendo de medo... Nós somos o início tardio de vossa consciência social... Viu? Sou culto... Leio Dante na prisão...

- Mas... A solução seria...
- Solução? Não há mais solução, cara... A própria idéia de "solução" já é um erro. Já olhou o tamanho das 560 favelas do Rio? Já andou de helicóptero por cima da periferia de São Paulo? Solução como? Só viria com muitos bilhões de dólares gastos organizadamente, com um governante de alto nível, uma imensa vontade política, crescimento econômico, revolução na educação, urbanização geral; e tudo teria de ser sob a batuta quase que de uma "tirania esclarecida", que pulasse por cima da paralisia burocrática secular, que passasse por cima do Legislativo cúmplice (ou você acha que os 287 sanguessugas vão agir? Se bobear, vão roubar até o PCC...) e do Judiciário, que impede punições. Teria de haver uma reforma radical do processo penal do país, teria de haver comunicação e inteligência entre polícias municipais, estaduais e federais (nós fazemos até conference calls entre presídios...). E tudo isso custaria bilhões de dólares e implicaria numa mudança psico-social profunda na estrutura política do país. Ou seja: é impossível.Não há solução.

- Você não tem medo de morrer?
- Vocês é que têm medo de morrer, eu não. Aliás, aqui na cadeia vocês não podem entrar e me matar... Mas eu posso mandar matar vocês lá fora... Nós somos homens-bomba. Na favela tem cem mil homens-bomba... Estamos no centro do Insolúvel, mesmo... Vocês no bem e eu no mal e, no meio, a fronteira da morte, a única fronteira. Já somos uma outra espécie, já somos outros bichos, diferentes de vocês. A morte para vocês é um drama cristão numa cama, no ataque do coração... A morte para nós é o presunto diário, desovado n’uma vala... Vocês, intelectuais, não falavam em luta de classes, em "seja marginal, seja herói"? Pois é: chegamos, somos nós! Ha, ha... Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó, né? Eu sou inteligente. Eu leio, li 3.000 livros e leio Dante... Mas, meus soldados todos são estranhas anomalias do desenvolvimento torto desse País. Não há mais proletários ou infelizes ou explorados. Há uma terceira coisa crescendo aí fora, cultivado na lama, se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando nas cadeias, como um monstro Alien escondido nas brechas da cidade. Já surgiu uma nova linguagem. Vocês não ouvem as gravações feitas "com autorização da Justiça"? Pois é. É outra língua. Estamos diante de uma espécie de pós-miséria. Isso. A pós-miséria gera uma nova cultura assassina, ajudada pela tecnologia, satélites, celulares, internet, armas modernas. É a merda com chips, com megabytes. Meus comandados são uma mutação da espécie social, são fungos de um grande erro sujo.

- O que mudou nas periferias?
- Grana. A gente hoje tem. Você acha que quem tem US$ 40 milhões, como o Beira-Mar, não manda? Com 40 milhões a prisão é um hotel, um escritório... Qual a polícia que vai queimar essa mina de ouro, tá ligado? Nós somos uma empresa moderna, rica. Se funcionário vacila, é despedido e jogado no "microondas"... ha, ha... Vocês são o Estado quebrado, dominado por incompetentes. Nós temos métodos ágeis de gestão. Vocês são lentos e burocráticos. Nós lutamos em terreno próprio. Vocês, em terra estranha. Nós não tememos a morte. Vocês morrem de medo. Nós somos bem armados. Vocês vão de três-oitão. Nós estamos no ataque. Vocês, na defesa. Vocês têm mania de humanismo. Nós somos cruéis, sem piedade. Vocês nos transformam em superstars do crime. Nós fazemos vocês de palhaços. Nós somos ajudados pela população das favelas, por medo ou por amor. Vocês são odiados. Vocês são regionais, provincianos. Nossas armas e produto vêm de fora, somos globais. Nós não esquecemos de vocês, são nossos fregueses. Vocês nos esquecem assim que passa o surto de violência.

- Mas o que devemos fazer?
- Vou dar um toque, mesmo contra mim. Peguem os barões do pó! Tem deputado, senador, tem generais, tem até ex-presidentes do Paraguai nas paradas de cocaína e armas. Mas quem vai fazer isso? O Exército? Com que grana? Não tem dinheiro nem para o rancho dos recrutas... O país está quebrado, sustentando um Estado morto a juros de 20% ao ano, e o Lula ainda aumenta os gastos públicos, empregando 40 mil picaretas. O Exército vai lutar contra o PCC e o CV? Estou lendo o Klausewitz, "Sobre a guerra". Não há perspectiva de êxito... Nós somos formigas devoradoras, escondidas nas brechas... A gente já tem até foguete antitanques... Se bobear, vão rolar uns Stingers aí... P’ra acabar com a gente, só jogando bomba atômica nas favelas... Aliás, a gente acaba arranjando também "umazinha", daquelas bombas sujas mesmo... Já pensou? Ipanema radioativa?

- Mas... não haveria solução?
- Vocês só podem chegar a algum sucesso se desistirem de defender a "normalidade". Não há mais normalidade alguma. Vocês precisam fazer uma autocrítica da própria incompetência. Mas vou ser franco... Na boa... Na moral... Estamos todos no centro do insolúvel. Só que nós vivemos dele e vocês... Não tem saída. Só a merda. E nós já trabalhamos dentro dela. Olha aqui, mano, não há solução. Sabe por quê? Porque vocês não entendem nem a extensão do problema. Como escreveu o divino Dante: "Lasciate ogna speranza voi che entrate!" Percam todas as esperanças. Estamos todos no inferno.»

1 comentário:

Jorge Carreira Maia disse...

Parabéns por ter colocado a entrevista no blogue. É um excelente documento. Mostra um dos limites da democracia: a natureza burocrática da decisão. É curioso que esta natureza da democracia não é problemática quando se trata de conflitos entre Estados (veja-se a II Guerra Mundial ou mesmo a Guerra-Fria). Mas quando o inimigo é o terrorismo islâmico ou a criminalidade política, tudo se torna muito mais complexo. Este caso não é o primeiro. Veja-se toda a história da Mafia italiana.

Mas o problema da burocracia não atinge apenas a decisão política. Julgo que as instituições públicas e as privadas estão a perder flexibilidade devido aos métodos de gestão e de avaliação altamente burocratizados. O que é extraordinário num mundo cada vez mais flexível e mutável.

Grande documento que eu não conhecia.

Abraço,
JCM

 

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